O cambismo é um velho conhecido do futebol brasileiro. Tão antigo quanto as promessas de combatê-lo com o rigor da lei. Durante anos, vendeu-se a ideia de que a tecnologia resolveria aquilo que a falta de vontade política nunca quis enfrentar. A implantação do reconhecimento facial, agora exigida por lei, surgiu como a promessa definitiva: quem compra é quem entra. Simples, lógico, moderno. Ou ao menos deveria ser. Mas não é…

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Na prática, o que se vê agora é a sofisticação da fraude. O sistema mudou, o problema não. O cambismo segue firme, ativo e descarado, não apenas nos jogos de futebol, mas também em shows e grandes eventos realizados nas praças esportivas do país. A biometria facial, que pressupõe a vinculação intransferível entre ingresso e torcedor, virou apenas mais uma etapa a ser contornada por quem sempre operou à margem — muitas vezes com ajuda de dentro dos clubes.

Torcedores do Corinthians lotaram a Neo Química Arena durante a temporada: rendas ajudaram o clube / Corinthians

O caso recente do Corinthians escancara esse fracasso. Depois de uma investigação interna, o clube demitiu por justa causa três funcionários acusados de apoiar cambistas, operar vendas clandestinas, inflar preços e manipular o sistema do Fiel Torcedor.

Tecnologia e fraude juntas

Não se trata de boato ou denúncia difusa: trata-se de irregularidades confirmadas, mesmo após a adoção da biometria facial na Neo Química Arena, em Itaquera. A tecnologia estava lá. A fraude também.

Virou cultural

O que deveria causar espanto já não causa mais. Cambistas anunciam seus “serviços” abertamente na internet, atendem clientes de todos os perfis e se apoiam numa certeza cultural: nada vai acontecer. O consumidor, por sua vez, aceita pagar o ágio como se fosse um pedágio inevitável para ver o time jogar. No Corinthians, isso é ainda mais sensível. Não há jogo em que sobre ingresso. Ainda assim, eles seguem aparecendo — não na bilheteria, mas nas mãos de atravessadores.

Biometria facial ampliou em quase três vezes a velocidade de entrada dos torcedores nos estádios do Brasil / Palmeiras

O problema pode estar em casa

A demissão dos funcionários é um passo necessário, mas claramente insuficiente. Antes tarde do que nunca, é verdade. Mas parar aí seria tratar o efeito e ignorar a causa. O cambismo não é um fenômeno espontâneo: é uma cadeia. E toda cadeia tem elos internos, zonas de privilégio e distribuição seletiva. Sem investigação profunda, sem responsabilização ampla e sem transparência real, o sistema apenas se reorganiza.

E como se não bastasse um escândalo, outro surge logo em seguida. Segundo denúncia divulgada pelo influenciador Cacá Catalão, do Canal do Povo Escolhido, a divisão da carga de ingressos para o jogo contra o Vasco, no Maracanã, expõe mais uma distorção grave. De cerca de quatro mil ingressos disponíveis, apenas 45 — pouco mais de 1% — teriam sido destinados ao programa Fiel Torcedor.

Torcida do Corinthians lota mais uma vez a Neo Química Arena: empate com o Grêmio / Agência Corinthians

O restante, segundo a apuração, foi pulverizado entre assessores, sócios, torcidas organizadas e interesses não esclarecidos. Há, inclusive, centenas de ingressos sem destinação conhecida.

Fiel torcedor engana torcedores

Diante disso, o problema ganha outra dimensão. O Fiel Torcedor não é um favor concedido pelo clube, mas um contrato. O torcedor paga mensalidade, sustenta o programa e o faz acreditando no direito à prioridade de compra. Quando essa primazia é esvaziada, o que se tem é uma forma de enganar o cliente. Não é falha operacional, é quebra de confiança.

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O combate ao cambismo exige mais do que catracas modernas e discursos bem-intencionados. Exige coragem para enfrentar privilégios históricos, transparência na distribuição de ingressos e atuação efetiva das autoridades. O cambismo não sobrevive sem conivência. E enquanto for tratado como um “mal cultural”, seguirá drenando recursos dos clubes, distorcendo o acesso do torcedor comum e transformando o espetáculo em mercadoria para poucos.

A tecnologia existe. A lei também. O que ainda falta é vontade de ir até o fim. Porque, no fim das contas, o prejuízo nunca fica apenas na bilheteria: ele atinge o torcedor que paga mais, o sócio que é passado para trás e o futebol que insiste em normalizar o que deveria ser intolerável.

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